AGNIDEVA – “o conceito “hinduísmo” é pura abstração inventada pela ideologia colonial ocidental e moderna”

“Agnideva é [...] como uma senda blasfema que permeia desde lembranças históricas de massacres e misoginias promovidas pelo câncer do mundo: o cristianismo [...]”

Entrevista

Eis aqui uma das entrevistas que mais ansiava em realizar, tamanha a admiração que tenho da inteligência e perspicácia do mentor da mesma e, claro! O legado construído nos anos noventa por sua antecessora a banda Abaddon. Além das triviais perguntas sobre novidades, projetos, letras e afins em uma entrevista com bandas de Metal em geral, nós buscamos aprofundar pensamentos sobre outros quesitos, sobretudo a cultura védica a qual a Agnideva constrói todo seu alicerce. Fiquem com essa grandiosa entrevista que nos faz pensar profundamente sobre o verdadeiro ideal anticristão, a desconstrução de pensamentos simplistas sobre oposição religiosa e como a ancestralidade não é um privilegio europeu colonizador e sim de civilizações muito mais desenvolvidas e sábias de outros continentes…

Alguns membros da Agnideva já foram integrantes de uma das mais ocultas bandas de Black Metal brasileira, a Abaddon, que, inclusive, na época você era baterista. Agnideva surge em 2013 e herda a estética da logo da Abaddon, houve algum propósito de associação entre esse passado da Abaddon e o presente da Agnideva? Se houve, sob quais aspectos essa associação ocorre?

Nightmare (foto de divulgação)

NIGHTMARE: Sim, o Agnideva reencarna das chamas, em tempos obscuros e no final de 2013 da era vulgar, emanando a evocação da antiga ancestralidade pagã indiana e tendo como intuito inicial dar continuidade às blasfêmias anticristãs da horda Abaddon (Paraíba), a qual havia se formado nos anos 1991, mas, por motivos pessoais, encerrou suas atividades profanas em 1993. A primeira onda surgiu com o Gore Vomit, em 1987, muito antes de conhecidas bandas brasileiras de black metal iniciarem suas exortações. Paralelo à essa onda precursora e sombria de Campina Grande, também surgiu o primeiro zine totalmente de black metal do Brasil, o Lucifer Venerabilis. Zine por mim iniciado e depois legado ao camarada e parceiro de longas datas, Therion (da horda Brahmasta). A Paraíba foi realmente uma pioneira no Black Metal nordestino e uma das precursoras no Brasil. Temos muito orgulho disso, pois, enquanto outras regiões se centravam com outros estilos, nós já blasfemávamos na esteira negra. E tudo isso antes das iniciativas baiana, cearense, pernambucana e potiguar; os centros mais fortes aqui no Nordeste.

Dois membros do antigo Abaddon: Christianicide (criador das logos do Abaddon e Agnideva) e eu (também cofundador do Gore Vomit), demos início às exortações que permeiam essa nova face do Abaddon: o Agnideva. Em novembro de 2014 integraram-se outros membros que preencheram a formação. Assim, de fato, o Agnideva é ideologicamente uma continuidade e com todo espírito intrínseco do Abaddon.

Em relação à transição de uma para outra, não vejo como uma mudança, senão uma ampliação ou maior profundidade na proposta, pois continuamos com a mesma pegada anticristã, o que é essencial e base para qualquer horda que tenha como sentido o metal, especialmente o metal negro. Metal sem uma visão anticristã, seja de qual estilo for, para mim, não é metal. Metal é, por princípio e tradição sonora, anticristão; está em suas origens.

Agnideva lançou um álbum em 2017 chamado “Kaliseva”, aliás, um álbum magnífico, cheio de símbolos sonoros orientais, estranhos aos nossos ouvidos (de forma genérica). Como você descreveria a construção desse álbum e estes significados sonoros e símbolos imagéticos que o permeia, além da força sonora na pronúncia de seu título?

Capa do Debut Álbum Kaliseva

NIGHTMARE: Como seguidores (“seva”) da Deusa Kali, manifesta-se “Kaliseva”, gravado no “Single Audio Studio” (Brasil). Podemos traduzir esta primordial vociferação como uma senda blasfema que permeia desde lembranças históricas de massacres e misoginias promovidas pelo câncer do mundo: o cristianismo (como em “Mistress Marrigje” e “Bastard Protestant Liars”), até cerimoniais de thelema e ritos védicos e tântricos em todas as suas mensagens; retomando o mundo pagão como transformação do ser ao contemplar a Tríplice Deusa (como em “Virgin, Mother, Crone”) e exortando mantras secretos (como em “Black Mantra”, cuja letra não foi divulgada, já que faz parte de cultos negros para iniciados). Culmina-se a senda com o culto à Kali, Agni e Shiva (como em “Kaliseva”, “Agnideva” e “The Dance of Shiva”, respectivamente). E para fechar o ciclo, o caos cósmico com “Pralaya”, uma ode indiana instrumental. Esse é o corpus infame do nosso primeiro álbum.

Os trabalhos de mixagem e masterização foram realizados por ninguém menos que Konstatinos Kalampokas (Infinite Loop Music Studio – Grécia), o qual foi responsável pela produção de “Untrodden Corridors of Hades” do Varathron, e em cuja memorável apresentação no Brasil, em 2015, também tocou o contrabaixo. O Kalampokas, juntamente com a violinista Débora Amorim (da UFCG) também fez alguns arranjos musicais na música “Virgin, Mother, Crone”. A cantora Akasha Samodivas participa como backing vocal na música “Mistress Marrigje” (dedicada à bruxa Marrigje Áriens, a qual o Quorthon dedicou ao clássico hino “Burn for Burning”), assim como Mayara Carmeli (também da UFCG) com arranjos orquestrais em “Mistress Marrigje”. E a capa do álbum é do renomado Marcelo Vasco, a qual representa brilhantemente o nosso sentimento. Kaliseva é, definitivamente, uma obra com língua pagã que cultua o Deus Flamejante (Agni) e espalha suas oferendas até os pés de Kali, contendo instrumentos peculiares como hulusi, violino, viola, cítara, tabla e cello.

Sempre nos moldamos em torno de cânticos e mantras pagãos em nossos sons. E encaramos tais mantras como um xamanismo indiano, já que o conceito “xamã” deriva, segundo o historiador e mitólogo Mircea Eliade, do sânscrito “Sramana”, que significa “Senhor dos Espíritos”. Sendo assim, de alguma forma, ao entoarmos mantras pagãos indianos, entoamos o seu xamanismo, já que possui o mesmo propósito: alterar e elevar o estado de consciência. Dos oito sons que estão presentes no álbum, seis falam da cultura indiana. Assim, Kaliseva é um álbum conceitual, mesclando as armas do metal negro com a conspiração inalienável de uma cultura sem medo e que nos mostra o caos como fenômeno natural da vida.

Muitos símbolos envolvem a banda, não obstante, o principal símbolo da banda é o hexagrama unicursal, que é um hexagrama (estrela de seis pontas traçado ou desenhado de maneira unicursal) em uma linha contínua, ao invés de dois triângulos sobrepostos. Em Thelema, de Aleister Crowley, que também é o sentido que utilizamos, o hexagrama é geralmente representado com uma flor de cinco pétalas no centro, a qual simboliza um pentáculo, indicando as forças do microcosmo se entrelaçando com as forças macrocósmicas, ou mesmo a união dos contrários em sinergia contínua. Nós inserimos ao hexagrama o símbolo do paganismo indiano do deus Agni, já que o paganismo indiano permeia nossa vociferação central. No logotipo da banda utilizamos um pentagrama invertido como símbolo do deus cornífero – como assim também Agni é representado; face de um bode formando o nome, como símbolo do veículo sacrificial que o deus Agni utiliza; assim como chamas em sua barba, a qual representa o fogo ou sua manifestação física. Também existe uma sutil cruz invertida nas chamas da barba, o que representa nossa força anticristã. Enfim, o próprio nome da banda Agnideva = “deus Agni”, deus do fogo, é um antagonismo ao “Agnus Dei”, já que somos o seu oponente. E foi com esse sentido mais profundo que pensei em tal nome, símbolo de nosso sentimento de guerra.

E quando compomos, levamos em consideração o que queremos dizer e a forma daquilo ser dito. Para o Agnideva, a música não é só um suporte para o que falamos, é também uma outra estrutura que tem sua autonomia narrativa. Quando misturamos esses dois elementos, letra e som, observamos que a música, muitas vezes, serve de ênfase ao que a letra diz, por outro lado, em outras, a música diz o que a palavra não tem condições de expressar. Quando estamos compondo, buscamos coerência entre a letra e o som, entendendo que tratamos de uma obra híbrida, na qual duas poesias sombrias (a literária e a musical) formam um só corpo, e que ritmo e harmonia se fazem lógicos e coerentes naquilo que buscamos passar enquanto mensagem; contribuindo, assim, para um black metal que almejamos.

O que vos levaram a percorrer a cultura védica, trazendo-a para a atualidade, onde a predominância do mundo ocidental acaba engolindo toda a informação histórica desses povos, mergulhando-nos numa imensa ignorância sobre complexas formações civilizatórias e transcendentais?

Nightmare (foto de divulgação)

NIGHTMARE: Todas as nossas letras são anticristãs e com ênfase na cultura pagã indiana. Eu componho as letras, que surgem de 37 anos de metal e décadas de vida acadêmica, sempre estudando religiões, cultura indiana e sânscrito; além de várias passagens pela Índia. A ideia de abordar o paganismo indiano vem de estudos de longas datas, das associações feitas pelo Crowley, de suas práticas, conceitos e referências em torno do tema, de sociedades secretas e místicas que não fogem à regra e por saber que a cultura indiana é uma das mais antigas, profundas e emblemáticas já existentes, com uma carga mística, ocultista, pagã e mágica sem precedentes. É, de fato, uma cultura que casa bem com o metal extremo, com o underground, com o black metal em geral e com toda a nossa ação e ideia anticristãs, bem como com toda cultura pré-cristã pagã. É uma grande arma que temos em mãos.

Todavia, inúmeras bandas, aqui e acolá, já abordaram o paganismo indiano. O Dorsal Atlantica, em 92, por exemplo, já exortava “kali yuga from vishnu purana“. Fora daqui, podemos lembrar também o Dissection com o clássico “Maha Kali”, Behemoth com “Ceremony of Shiva”, Therion com “Kali-yuga” em três partes e em “Eye of Shiva”, Shadowseeds com “Kalis Moon”, Runemagick com “Eyes of Kali”, Legion of the Damned com “Death is my Master (Slay for Kali)”,  Acherontas com seu álbum “Vamacara”, Cult of Fire com o álbum “Life, Sex, & Death” e em “Ascetic Meditation of Death” (tradução aproximada, já que o título e os sons estão escritos em devanágari ou diacríticos sânscritos); Lord of Doubts com “Kali Ma, Black Mother”, os italianos do Drought e seu surpreendente “Rudra Bhakti”, os suecos Siddhi e Samhara, além do Murmurs com “Jaya Mahakali Ma”; o Impurity (americano), os gregos do Parvati com “Benighted are the Befallen”, Rotting Christ com “Devadevam” e o Disharmony com seu grande ocultismo tântrico; Astarium com “Nekrocosmo: Nocturnal Kali Yuga”, os ucranianos do Aryadeva, os finlandeses Rahu, os espanhóis do Brahmakshatriya, o Necros Christos em “Doom of Kali Ma”, bem como a citação de Shiva e do poder de seu símbolo, o tridente, no “Opus Diaboli” do Watain; sem contar com os brutais mexicanos do Throne ov Shiva e seu satanismo emblemático. Ainda me lembro da belíssima camisa oficial do Morbid Angel – “Kali”, para o European Metal Fest de 2008. Noutros termos, os Deuses pagãos indianos sempre se fizeram presentes no metal extremo. No mais, todas as bandas que abordam o ocultismo de thelema, direta ou indiretamente, abordam o paganismo indiano, já que o Crowley muito o abordava, conhecia e praticava.

Mas, pessoalmente, em relação aos Vedas e minha motivação a abordá-los, é a mesma que motivou o pensamento ocidental desde os órficos até os filósofos modernos: profundidade. Ao elogiar a filosofia do indólogo Victor Cousin, por exemplo, Lewis O’Malley descreve em conjunto o impacto da literatura sânscrita na Europa: “A sabedoria encontrada nas literaturas sânscritas foi aceita como se aceita algo reverencialmente. Desta forma, o filósofo francês Victor Cousin, falando da poesia e dos movimentos filosóficos do Oriente e, sobretudo, dos da Índia, que estavam, segundo ele, começando a se espalhar pela Europa, declarou que comportavam tantas verdades, e verdades tão profundas, que foi obrigado a ovacionar o gênio do Oriente, para ver no berço da raça humana a terra natal da mais alta filosofia”. Afirmação que até hoje deixa muitos eurocêntricos nervosos. Assim sendo, da mesma forma que o Renascimento italiano começou com a migração de árabes (munidos do conhecimento indiano) para a Europa, um Renascimento oriental, com os estudos do sânscrito e das filosofias e literaturas indianas, por parte dos ocidentais, têm ocorrido com muita força ao longo dos últimos dois séculos e meio; com centenas de importantes acadêmicos, poetas e artistas em geral que se inspiraram e divulgaram o pensamento clássico da Índia. Tudo isso facilitou a disseminação de ideias védicas entre nós. Da mesma forma, esta pedra de toque indiana contagiou o Agnideva.

Tendo como base a questão anterior, onde se caixa o hinduísmo nas construções ideológicas da banda?

NIGHTMARE: o conceito “hinduísmo”, observa Aisnlee Embree: “O cenário físico é a terra que, desde épocas passadas, o mundo ocidental conhece como sendo a Índia, uma palavra que os gregos tomaram emprestado dos persas, que, por causa da dificuldade que tinham com o ‘s’ inicial, chamavam o grande rio Sindhu (moderno Indu) de ‘Hindu’. Foi com esta palavra que os estrangeiros passaram a designar a religião e a cultura dos povos que viviam na terra banhada pelos dois rios, o Indo e o Ganges, embora os próprios nativos não usassem o termo”. Richard King corrobora Embree e acrescentará que o conceito “hinduísmo” é pura abstração inventada pela ideologia colonial ocidental e moderna, o qual, até meados do século XIX, pouco se relacionava com a grande diversidade das culturas indianas, sendo, portanto, um termo estrangeiro à própria cultura. E tal termo, inventado pelos persas, diz King, apenas será empregado pelos próprios indianos nos séculos XV e XVI para se diferenciarem dos estrangeiros invasores, mas sem nenhuma conotação religiosa, a princípio, como assim a moldou o orientalismo do século XIX. Todavia, complementa King, a partir do crescente interesse pelo pensamento indiano no século XVIII europeu, o termo “hinduísta” ganhou força como termo geográfico e cultural especificamente. E a primeira expressão do termo, como o conhecemos hoje, surgiu no início do século XIX, já que as referências do século XVIII voltavam-se para o termo “gentio”, como é o caso do filólogo inglês Nathaniel Brassey Halhed, em sua obra A Code of Gentoo Laws (1776). O primeiro indiano a utilizar o termo no sentido religioso foi Ram Mohan Roy (1772-1833), em 1816, já influenciado pelos orientalismos inglês e muçulmano. Hinduísmo, portanto é uma invenção ocidental colonialista e não pactuamos com isso.

Cinco anos após ter lançado seu debut álbum, o Agnideva inicia o processo de produção da nova obra, iniciando um interessante processo de elucidação sobre as temáticas abordadas: letras, inspirações etc. em vídeos curtos na rede social. Nos conte sobre esse processo, além de discorrer um pouco sobre o título do álbum.

Capa do Segundo Álbum Judaine

NIGHTMARE: Se intitula “Judaine”, um neologismo propagado pelo filósofo Nietzsche e que se remete ao entorpecimento e alienação causados pela cultura judaico-cristã. O álbum se centra na obra “O Anticristo” de Nietzsche, sendo todas as suas letras aforismos desta obra, com exceção de “Sutra”, a qual remete alguns conceitos ou mantras indianos usados pelo filósofo. Terá nove sons inéditos e com a participação de alguns convidados. Um álbum, portanto com mais foco contextual e mais pesado. Todavia, já tivemos, desde a produção de “Kaliseva”, vários percalços internos na banda que retardaram o lançamento do segundo álbum: o antigo guitarrista solo, já com todos os sons prontos (pouco antes da pandemia), saiu da banda por divergências e práticas que não condiziam com a nossa proposta, o que nos levou a refazer as guitarras; assim como, recentemente, ocorreu um grande retardo da bateria – uma vez que também estávamos prestes a perder a já realizada (prontíssima) gravação dela –, já que o baterista, por outras questões internas, também saíra da banda. No balançar da carruagem, ainda está em questão se a bateria (já gravada) permanecerá e se o antigo baterista continuará no álbum como participante especial. Por estes motivos, atrasamos o lançamento do segundo álbum em pelo menos três anos. Contudo, já estamos em contato com o novo baterista (o qual revelaremos em breve! Mas posso adiantar que é um exímio baterista e irmão de batalha de longa data), no intuito de já produzirmos um novo material, uma vez que já tracei o projeto para o terceiro álbum.

Anteriormente você apontou um fator importante que permeia a inspiração para os textos desse novo álbum: a incursão, aprofundamento e sinergia do paganismo védico ao Nietzsche, principalmente em uma de suas obras mais ácidas: “O Anticristo”. Vocês conseguem perceber uma interessante conexão entre ambos os pensamentos: de Nietzsche e da cultura védica. Pensando nisso, discorra um pouco sobre esses fatores inseridos nos cânticos profanos da Agnideva.

NIGHTMARE: Apresentamos um Nietzsche pouco conhecido e com marcas profundas de uma cultura oriental que ocupou seu espírito e seus escritos. A Índia, o pensamento nela inserido e o que chegou à Alemanha até a época do filósofo, não foi ou se tornou uma simples aventura ou curiosidade em Nietzsche, senão um choque proveitoso e misturado com um encanto de pensamento sistemático, novos olhares e ousadias. Novos olhares: fora das fronteiras europeias, fora da moral e erudição (otimismo da razão moderna). Nietzsche deleita-se, aconchega-se, encontra-se e anseia, como ele mesmo expressa, mais e mais. A Índia lhe faz bem, muito bem, bem além do bem e do mal. Uma Índia que, além de ser ponto de referência para suas comparações frente ao cristianismo, lhe servia de ponte ou de inspiração para além-do-homem. Tento, nas letras, mostrar esse encontro de ideias e dou um pequeno exemplo de como o filósofo se apoderou delas, especialmente em torno do Código de Manu, sobre o qual ele se debruça com uma espécie de sede crescente e o utiliza em comparações. Esse grande interesse de Nietzsche pela filosofia sânscrita e pensamento indiano, de fato se deu durante toda a sua vida, não apenas em um momento específico. Ele penetrou profundamente em sua essência. Até mesmo os críticos de sua época não deixavam de relacioná-lo com a Índia. Tão intenso foi, que a expressão “olhar transeuropeu” tornou-se uma expressão corriqueira dele, surgida em vivazes cartas ao seu amigo sanscritista Paul Deussen. Em tais cartas, Nietzsche fala de seu “olhar transeuropeu” com muita vivacidade, o qual lhe permite ver que “a filosofia indiana é o único paralelo à nossa filosofia europeia”, diz ele. Em janeiro de 1875, Nietzsche evidenciará: “anseio, eu mesmo, beber da fonte da filosofia indiana, que um dia você [Deussen] há de abrir para todos nós”. Desta forma, Nietzsche possui um “olhar transeuropeu” para demonstrar que ele não era definitivamente paroquiano em seu entendimento da Filosofia, e que estava aberto a uma perspectiva mais ampla, mais multicultural. Assim expressar-se-á a Deussen: “Eu tenho, como você sabe, uma profunda simpatia a tudo o que você tem em mente para analisar [a filosofia indiana], e isto pertence ao que há de mais essencial para promover a minha liberdade de preconceitos (o meu ‘olhar transeuropeu’): que a sua vida e trabalho me lembrem novamente, outra vez e outra vez, desse grande paralelo à nossa filosofia europeia. Em relação a este desenvolvimento indiano, ainda reina aqui na França a mesma e velha ignorância absoluta. Os seguidores de Comte, por exemplo, estão criando leis totalmente ingênuas para um desenvolvimento historicamente necessário, com uma sucessão das principais fases da filosofia, nas quais os indianos não são citados em nenhuma delas – leis que estão, de fato, em contradição com o desenvolvimento da filosofia na Índia”. Nota-se, assim, uma relação com a Índia que penetrou suas entranhas. E essa relação também é a relação do Agnideva com a Índia.

Para o pintor Tadeusz Kantor (Polônia, 1915-1990), nada expressa melhor a vida do que a ausência de vida, sendo a morte um processo que está muito distante do religioso-sobrenatural. Ela é a condição finita da temporalidade que fundamenta o sentido da existência e que permeia toda a vida humana. Diante dessa afirmativa. sobre a ausência de texto no teatro, a humanidade pautou as religiões sobre a vida pós-morte. Dito isso, que nos parece um pensamento deveras ateu, o Agnideva, por abordar a cultura védica, de complexa compreensão, tem uma visão particular sobre a morte como finitude ou “infinitude”?

NIGHTMARE: Nada no Cosmos é finito, nada é linear, já que tudo se movimenta ciclicamente. Se tudo no Cosmos é cíclico, uma vez que nada se cria, nada se destrói, mas tudo se transforma (Lavoisier), por qual motivo seríamos tão únicos ao ponto de sermos finitos e não nos transformarmos? Por qual motivo cremos ou imaginamos que não somos Natureza, que dela não dependemos e que fora do seu ritmo estamos? Tudo no Cosmos segue o mesmo “ritmo”, o mesmo rta (em sânscrito), o mesmo “rito”. Estamos na rima do rito real da Natureza, não existe finitude! As coisas só são finitas em nossa cabeça, em nossa ignorância, a qual ignora tudo ao seu redor, que é cíclico. Tudo apenas muda de estado físico, de um filtro de consciência para outro, de percepções. Quando a água sai do estado líquido para o estado gasoso ou sólido, ela não deixa de ser água, apenas muda sua potência, sua ação, seu efeito; mas lá está! Assim é tudo o mais, e nós não somos diferentes, apenas mudamos de “estados”, de “corpos”, de potências, de ações.

As bandas de Metal Negro brasileiras, em sua consistente maioria dos casos, tem uma tendência a criar imagens sonoras mais sombrias e nem tanto velozes como podemos observar em diversas bandas estrangeiras. Com o Agnideva e sua tendência de criar atmosferas sombrias e imagens sonoras perpétuas, letais e obscuras, acredita-se que essa característica recobre, de maneira intrínseca, um aspecto cultural da cena nacional e que se retroalimenta dessas formas de expressão sonora?

NIGHTMARE: sociologicamente, sim, é possível, muito possível!

De uns bons anos para cá, tem crescido o número de bandas no metal negro mundial que criam tendências

Foto de divulgação

atualizadas, pois muitas bandas nos anos 90 já faziam, e, estas, se rotulam como “Orthodox Black Metal”, mas que, em alguns casos, fazem alusão opositora ao catolicismo ortodoxo praticado no Oriente, porém, esse termo se diluiu a ponto de muitas bandas interpretarem como aprofundamento no ocultismo, se afastando de algumas bandas que apenas fazem abordagem dos temas, sem uma prática, por exemplo. Qual sua opinião sobre essa tendência, isso cria uma vertente ou apenas alegorias factuais?

NIGHTMARE: toda vertente ou alegoria factual que seja anticristã é válida, não me importo com tendências, me importo se estão mantendo a essência anticristã, o resto é detalhe. Vertentes sempre surgirão, tendências sempre surgirão, e quem é “real” não se incomoda com isso, segue naquilo que mais lhe dá sentido, prazer e oportunidade de front.

Recentemente a banda divulgou a capa do seu próximo álbum, nos conte como foi a ideia para chegar à imagem, quem a concretizou e o que esperam deste novo trabalho?

NIGHTMARE: O Marcelo Vasco sempre teve total liberdade artística. Nós damos a ideia geral do álbum, falamos um pouco das letras e ele faz o resto. E como gênio que é, sempre extrai o âmago da banda. No máximo, interferimos nos detalhes das cores, mas não na ideia. O que esperamos deste álbum? Bem, que inspire mentes obscuras a baterem cabeça e se inquietarem reflexivamente com nossa proposta.

Aleister Crowley foi um, se não o maior, ocultista dos últimos tempos que mais se aprofundou nos conhecimentos transcendentais, sendo um dos “magistas” que abriu portas para o conhecimento das sombrias religiões orientais. Houve algum tipo de influência dessa exposição feita por Crowley em seu legado ou que tenha despertado interesse na Agnideva pela cultura védica?

foto de divulgação

NIGHTMARE: Para esta inteligente questão, colocarei aqui uma parte que está presente em um livro que estou elaborando já há algum tempo, intitulado “Memórias de um Headbanger”, o qual trata de uma singela autobiografia. Ao relatar no livro meus primeiros contatos com o ocultismo, dentre ouras ocasiões, tive acesso a um deslumbrante acervo de livros, por facilitação de um saudoso amigo que partiu em definitivo para a Índia. E paralelo a outros importantes autores que me inspirei e passei a ler, assim me reporto sobre o Crowley: “sobre Thelema e a me esperar, sempre me encarando com paciência, finalmente, após folhear com atenção e me focar nas embriagantes imagens de Divine Horsemen de Maya Deren e ler um velho livro de poemas do Yeats, o qual me dizia coisas indianas, senti que podia me aventurar um pouco mais nas litanias de Crowley: “Aguarda um homem o seu fim, tudo a temer, tudo a esperar; já muitas vezes morreu ele, as muitas vezes retornando”; e ainda me intimando: “Pega este livro: junto ao fogo, a cabecear, lê com calma; e com os olhos de profundas sombras sonha, sonha com o teu antigo e suave olhar”. Agora, aos dezessete anos e com um glossário teosófico para me auxiliar com os termos sânscritos, li com calma Oito Palestras Sobre Yoga do Crowley. Tais Palestras, além de demonstrar mais abertamente para o próprio Crowley o propósito de toda a sua Obra anterior – o autor assim apresentava-se –, mais uma vez (e cada vez mais) eram nítidos o poder e a presença crucial do paganismo e das filosofias indianas em todo o ocultismo moderno e nele. Ali estava o maior representante deles e centrando-se no lado oculto do Yoga. No entanto, não apenas pela centralidade do tema naquelas conferências no Soho, pois não se tratava de mera curiosidade pela Índia ou por seu exotismo, ou mesmo por ser uma cultura diferente e na moda desde os órficos. Crowley estava, de fato, interessado em seu aspecto diferenciado, por ser a mola motriz de todo um conhecimento especial e vibrante, o maior deles! O Yoga preenchia tudo aquilo que ele confiava plenamente, como ele mesmo apontou, e, ao mesmo tempo, rejeitava as falsas virgens e os pombos, tendo um método científico e um objetivo superior. Ele chamava constantemente o Yoga de ‘grande ciência’ e ainda enfatizava: ‘vimos que o Yoga está implícito em todos os fenômenos da existência’, pois, no mais, ‘começamos a ver uma junção quase insensível do caminho do Yoga […] com o da Magia’ e ‘isso sugere que o Yoga é, em última análise, uma sublimação da filosofia, assim como a magia é uma sublimação da ciência’. E ouso dizer que, na verdade, não existe nenhum grande aforismo do Crowley que não implique em Yoga, nesse yoga místico que não tem quase nenhuma relação com as modas corporais que se estabeleceram no Ocidente”. Penso que esta pequena passagem responda sua questão, uma vez que para a mais brilhante e alternativa mente ocultista do século XX (da era vulgar), a Índia não era, como para ninguém que a leu seriamente, apenas símbolos e nomes alternativos, gestos e práticas místicas distantes, senão que lhe era o fundamento de tudo, o pensamento sustentável de qualquer prática, o sentido de ser e dever-ser, o além-do-homem que não nega o incomensurável, a lógica do invisível mais profunda. Ela lhe ensinou (e me ensinou), definitivamente, “o amor sob vontade”.